O fim de Ricardo Alves
por Caio Bonifácio
Conversão fundamental do mundo das imagens: a coação de um sentido multiplicado o libera do ordenamento das formas. Tantas significações diversas se inserem sob a superfície da imagem que ela passa a apresentar apenas uma face enigmática. E seu poder não é mais o do ensinamento mas o do fascínio.1
A pintura "Fim", de Ricardo Alves, tem dimensões e
orientação características de uma pintura histórica. Ela denuncia sua
historicidade: o título remete a uma teleologia, como o fim previsto em um
progressão temporal, ao qual todos os seus fenômenos remetem.
O fim é referência a um ponto, no tempo ou no espaço, que
incorpora a cessação do movimento. Na pintura em questão, o fim está no acúmulo
e na distribuição de elementos organizados (em desordem e confusão) na
superfície da tela. O ponto final é o próprio inventário obsessivo desses
elementos que constituem um mundo de signos – que se embolam na história da
pintura, ou em uma narrativa das imagens. “Fim” não anuncia uma nova morte da
pintura, mas o nascimento de uma pintura do abismo.
A superfície da tela é totalmente preenchida por sinais
gráficos: o desenho simplificado de uma árvore de natal, uma rosa feita no
estilo de tatuagens, uma personagem de cartoon,
uma caveira, um caixão, ossos… e a lista segue. Surge a palavra fim, quase nas
dimensões da própria tela – não como uma inscrição óbvia acima de todas as
coisas, mas como um fio trançado entre os outros elementos.
A palavra fim vem à superfície pelo acúmulo das imagens.
Tudo se mistura, se confunde, e essa qualidade se choca com a finalidade desses
sinais: elaborações gráficas estilizadas a ponto de serem tomadas como uma
transparência. Ou talvez seja uma opacidade total, o caso de uma reflexividade,
no sentido do espelho, que é a todo tempo aquilo que reflete.
Minnie, o rato, se
assusta com um rato. Enojada, joga para o alto suas garrafas, enquanto
grita “Credo! Um rato!” e mantém os olhos fixos na figura pequena, cinzenta e
animalesca de um rato.
Minnie não é um rato. Ela é uma figura estilizada a partir
da imagem de um rato, mantendo algumas de suas características e afastada do
todo. Ela se assusta com outro rato, representado à semelhança de um rato real.
Seu estranhamento é com o excesso do rato, sua repetição, sua fidelidade – tudo
que ela perdeu.
A imagem do cartoon é radicalmente reduzida (formalmente simplificada, à semelhança do procedimento
modernista?), ao ponto de parecer longe demais do rato. Então Minnie deixa de
ser um rato, é simplesmente Minnie e coincide consigo mesma. Sua existência é
achatada, algo nela diz rato, mas apenas Mickey é seu semelhante. Um rato
assusta, pois ele lembra, talvez, de um momento antes, de uma alteridade de si
mesma. Quando foi que Minnie deixou de ser um rato? Quando ela deixou de
lembrar que é um rato?
Um espelho que reflete
outro espelho. Uma imagem cheia de profundidade, sem nada no fundo.
A árvore de natal na parte superior da pintura não tem quase
nada de árvore. A rosa, a caveira, o coração atravessado por uma flecha também.
(Achei muito difícil nomear essas figuras, então optei pelo que elas não são,
as coisas com as quais guarda só distância.) Essas figuras afirmam um uso da
linguagem que escapa ao utilitarismo e se apresenta enquanto opacidade aberta à
significação.
O crítico de arte Hal Foster, a partir da série Death in America, de Andy Warhol, sugere
uma leitura da Pop art como
referência e simulacro de uma só vez. Ele propõe uma relação que denomina
realismo traumático: as imagens da Poprelatam um sujeito traumatizado pelo real, que se debruça sobre suas imagens,
tentando dar sentido a partir daquilo que se refere, em temor de em algum
momento tocar nas coisas mesmas.
Ricardo parece tomar um procedimento pop: a apropriação de
imagens para produzir nelas uma distância. É assim com Warhol, ao esgarçar o
busto solene de Mao Tsé-Tung pela reprodução serigráfica, ou com Roy
Lichtenstein, ao recortar, isolar e reproduzir em pintura os quadrinhos
produzidos à semelhança de uma impressão reticulada.
Principalmente parece haver um diálogo com Jasper Johns,
quando este deixa em suspenso a bandeira dos EUA, fragmentada em pinceladas
(cor e gesto). No canto superior direito da tela há um trecho de faixas
horizontais vermelhas e brancas, uma referência à bandeira estadunidense? Ali,
o gesto é mais forte em relação a outros momentos da pintura, é um fazer quase
obsessivo de um corpo exasperado.
Quando Ricardo conta sobre o processo de produzir a pintura
“Fim”, ele se refere a ela como uma resposta fatalista e ridícula à pandemia.
Talvez aqui não seja exatamente um realismo traumático. Diria que o sujeito
dessa pintura está em luto, neurótico e obsessivo na busca por estabelecer as
relações até o fim.
Ele sai pelos destroços do mundo, buscando qualquer traço
daquelas coisas que um dia habitaram esses lados. Um mundo já tão pouco
tangível, das imagens que não se referem a outras imagens nem às coisas, apenas
a elas mesmas. Recolhe um sem fim de figuras enigmáticas e tão familiares, que
lembram algo já esquecido. Não satisfeito, dispõe essas figuras sobre um plano
e busca estabelecer suas relações – talvez seu movimento. Na pintura de
Ricardo, o fim não está dado. Vislumbra-se uma ordem no caótico do todo.
O movimento implica transformação constante. Esse sujeito
então começa a bater sobre essas figuras, não com raiva, mas como quem tira pó
de um sofá. Ele agita a superfície, seus recolhidos se desorganizam. O que
importa é deixar tudo junto, não perder aquilo, e o caos é uma finalidade. Ele
está no início, aquela superfície é o caldo primordial.
Voltar, tomar um tempo e observar. Então se mover e fazer
com que a poeira decantada se misture nas novas ondas formadas pela agitação.
Um elogio de tudo, da derrota, da vitória, da televisão, do açúcar adicionado,
de um belo pôr do sol laranja.
O monumento
É de papel crepom e
prata
Os olhos verdes da
mulata
A cabeleira esconde
Atrás da verde mata
O luar do sertão
O monumento não tem
porta
A entrada é uma rua
antiga
Estreita e torta
E no joelho uma
criança
Sorridente, feia e
morta
Estende a mão
O trecho é da canção Tropicália, de Caetano Veloso. Lembro
do procedimento tropicalista, de juntar elementos imagéticos do desenvolvimento
e outros do atraso. Com o mérito de reconhecer a irracionalidade que sustenta o
sonho do desenvolvimento que marca as políticas públicas no Brasil. O
retrógrado é indispensável ao avanço.
O ciclo se repete sob os anos do governo Bolsonaro,
orientado pela proposta de realizar uma vocação agrária do Brasil aliada à
industrialização. Seu incentivo aberto ao agronegócio e velado à extração
ilegal de madeira são posições retrógradas em relação aos avanços na construção
de soberania nacional e nas discussões sobre ecologia, economia, antropologia.
Veja a Ferrogrão, ferrovia destinada ao transporte de
madeira e que atravessa a reserva indígena do Alto Xingú. Sua construção
desmata, talvez menos do que a ocupação que incentiva, com seu uso para
transporte de madeira e soja através de uma área reservada. Sem fiscalização, a
facilidade do transporte é um motivo a mais para lucrar com a morte.
Uma resposta patética, talvez, ao aparente fim
do mundo. Patética, como em cheia de
afeto: alguma esperança por encontrar ordem no empreendimento de escavar,
reunir e escrutinar um repertório de imagens mortas. A morte é representada na
pintura como um esqueleto caído. A morte figura na pintura como o acúmulo dos
signos. Com a alegria das cores! Um estado de alegria eufórica frente à miséria
do real.
[1] Foucault, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2019. p. 24