ricardo alves

Processo infinito
por Caio Bonifácio


*Texto escrito para a exposição “Problemas com nomes” de André Bontorim & Ricardo Alves, realizada no Massapê Projetos, São Paulo/SP, em março de 2024.



Fui convidado a escrever este texto uns três ou quatro meses atrás, para a exposição no Massapê projetos. Fui lá e vi a sala, que me pareceu tanto uma capela – imaginei os bancos de madeira e a imensa reverência frente às imagens sacras na parede.

Ainda não tinha nome, mas veio a se chamar Problemas com nomes (a partir de uma pintura homônima do André Bontorim). Entendo, visto a dificuldade em nomear uma mostra que reúne aquilo que é da ordem da superfície absoluta, das impressões mais diáfanas. No mundo delirante das imagens, não explicar, como fariam aqueles que estão ávidos em substituir a coisa pelo nome, mas produzir uma pintura.

Visitei algumas vezes os ateliês do André e do Ricardo Alves. Acompanhei, a meia distância, o processo de seleção das pinturas, vi o nascimento de algumas. Participei sem participar do processo infinito.

O André e o Ricardo vêm do interior do estado. Os dois chegaram em São Paulo para estudar artes visuais nas universidades estaduais daqui. Antes disso e ainda estava em processo o processo infinito. Tudo começou com o primeiro estalo.

Tudo volta, tudo retorna. A música ecoa nas câmaras vazias. Ondas quicam nas paredes descobertas há muitos anos. Faz tanto tempo que elas se perderam no espaço, no tempo. Em sua finalidade. São as camadas que já não podemos identificar, são os ecos, as batidas, os ruídos. Os chiados de uma emissão radioativa de há muitos milênios. O momento da criação reverbera horrivelmente em nossas televisões. Como imagens nítidas, terrivelmente visíveis, estimulantes, narcóticas. Há um momento. Apenas um momento. O surgimento da imagem. Esse único momento não passa do eco de outros. Muito tempo, espaço, ruído.

A ideia de que nós, durante um dia, vemos mais imagens do que pessoas em outros momentos no tempo e no espaço teriam visto durante toda a vida me fascina. Isso pode colocar um problema de definição: a imagem seria sempre um fruto do trabalho ou poderia ser qualquer impressão visual, então um acontecimento, fruto do contraste entre quaisquer dois ou mais espaços diferentemente ocupados?

A mim parece que as pinturas do André vão frequentemente por um de dois caminhos: ou têm pinceladas rápidas, com tinta fluida que deixa entrever o fundo da tela ou a base preparatória, e riscam a superfície como um rascunho, ou têm várias camadas de tinta, que delineiam e ocultam as formas, para fazer emergir uma imagem difusa. Nas pinturas do Ricardo, por outro lado, vejo a tinta sempre ostensivamente presente, espessa, e como registro do gesto imperativo de construir uma imagem: as massas de matéria colorida fixam o movimento, acumulam-se e dão corpo às imagens que, vez ou outra, já tinham um corpo que talvez não correspondesse.

Eu já perguntei a eles de onde vêm as imagens. Aprendi que há muitas respostas para isso. As imagens estão ali há muito tempo, ou elas surgem na cabeça como uma visão, um sonho. As escolhidas para serem pintadas ecoam aquelas já vistas num outro momento: fotografias de família, memes, emojis, livros de história da arte, peças de publicidade, revistas em quadrinho, arte em museus.

Não tem mãe, não tem pai, não tem origem. Espalhados pelas galáxias, pelo escuro, pelo fundo negro, infinito, do mistério. É o mistério, sobre o nada, deitadas no vazio profundo. Dentro da noite veloz, o que se esconde? O que se esconde no negro profundo do espaço universal? O que sua escuridão resguarda? Lá nunca é noite, muito menos dia. Não chove, não venta, não há som. Apenas figuras, imagens que se revelam pelo contraste. Propostas de aparições, revelações, corpos iluminados que em realidade roubam a luz de outros corpos.


No universo de imagens do André há uma caminhada lenta de outras que não estão ali. Como se todas tivessem colidido e se fundido no terceiro acontecimento, só visível em tela. Acho que tudo se mistura e, às vezes, olhando, lembro das pinturas de…muitos artistas, e lembro sobretudo das imagens, dos frames na televisão. Todas as referências se misturam no processo infinito.

Essa solução criou novos problemas, de 2023, é um instante no choque das imagens. Nela se fundem momentos da abstração, desde sua elaboração em Wassily Kandinsky, passando pela rebordose minimalista e chegando, de alguma forma, aos mangás e revistas em quadrinho. A simplificação de formas e cores, estratégia construtivista para uma produção estética industrial, é também o ponto de partida dos desenhos animados, dos cartoons. Dispostas numa teia, algumas linhas grossas vermelhas sugerem um rosto ou não, de um homem-aranha mascarado.

Hoje vivemos o apocalipse que nos prepararam. Nos prepararam também para o apocalipse. A ruptura da ordem. A vaca e o frango, essa metáfora. A pergunta certa a ser feita é: por quê? Por que se remeter ao minimalismo, à tradição abstrata geométrica? Conceber, praticar fielmente os pressupostos da limpeza formal – a exigência, a luta por, a realização momentânea de uma autonomia. O crime e o plano do crime: a tela. Como podemos ouvir essas vozes do passado, que nos deixaram uma herança incrível de planos para dominar o mundo?

Em Ultra deep field: coletânea miscelânea, feita para esta mostra, Ricardo realiza um sumário de suas pinturas. Mais uma etapa do processo infinito. Figuras vindas de outras pinturas suas são organizadas sobre o fundo preto, infinito, do espaço sideral. No vácuo dos lugares longínquos, antes o espaço do não visível, do não acessível nem aos olhos – esses órgãos que nos dão o tato à distância –, no espaço de outras galáxias, acessível pelo Hubble, Ricardo insere as figuras de seu arsenal pessoal. O bolo de aniversário da Julia, as letras do alfabeto LANÇAMENTO, a Meninona (uma reprodução em maior escala da pintura da Menininha) reduzida, entre outras.

Revelar: descobrir, mostrar. Ou revelar: cobrir novamente, repetir o ato de velar. As pinturas revelam, novamente, cobrem com um véu o corpo decomposto da compreensão. Imagens que não mostram, não deixam ver, no máximo indicam. Que aqui há um diálogo, que algo foi dito (e esquecido repentinamente), que foi feito e registrado.

As imagens tanto do André e do Ricardo estão em um laço afetivo. Se vêm de um álbum de família, da televisão ou do feed do Instagram. Se vêm de uma lembrança vaga, solidificadas na visão turva das próprias pálpebras. Todas as imagens estão envoltas em um laço de amor, de paixão, de desejo, de fascínio. O papel da memória é fundamental aqui, já que ela filtra a seleção dessas imagens. Uma seleção dos momentos mais marcantes frente a uma peça de mídia indistinta. Se essas pinturas visam registrar esses impactos, o processo é infinito.

Os dois artistas trabalham na catalogação dessa coleção de velhos amantes: o André fixa momentos flutuantes de sua formação visual em colagens misteriosas; o Ricardo submete as imagens a uma analítica da repetição, que multiplica os ruídos da reprodução reiterada, gerando significados mais arcanos. São processos infinitos.