por Lucas Alberto
*Texto do curador, escrito para a exposição “Known by Heart”.
Ele cintilava ausente, aconteceum.
Pois. E mais nada.
Guimarães Rosa
Pois. E mais nada.
Guimarães Rosa
A iluminação branda torna imprecisa a faixa horária; estamos em algum momento entre o acender e o apagar das luzes,
talvez no exato instante em que elas piscam. Sob tal claridade firme e tímida, duas pessoas estão sentadas, há uma
diagonal entre elas; ao redor, paredes brancas, teto e chão delimitam o espaço. Podemos ver pinturas de diferentes tamanhos penduradas em conjuntos, a dupla conversa sobre algumas delas e toma decisões a respeito de uma exposição.
O enquadramento da cena sugere que acabaram de encontrar seu título: Known by Heart. Ao fundo os detalhes tornam-se
escassos.
A imagem descrita acima é um registro mental provisório dos encontros com Ricardo Alves. A posição enunciativa escolhida, essa terceira voz participante que nos olha, poderia ser uma das imagens pintadas pelo artista, também a nos encarar e descrever. Propor a imagem como ponto de enunciação, nos situar diante do olhar revidado pela pintura, fazer falar o forro imaginário que sustenta a cena são declinações de um jogo constante em suas obras, algo que se formaliza sem esforço, como num gesto que se sabe de cór. Apesar de sutil, tal jogo perspectivo é grave. Ele não se desenrola por intenção calculada; palpita nas telas com a espontaneidade do ritmo cardíaco, e se desenrola de coração para coração, como um sinal sensível transmitido num revirar de ponto de vista disposto pela tela. A gravidade dessa operação simples subverte a clássica posição retiniana de quem vê ou lê uma cena. Fazendo girar o enquadre, agora a imagem é rainha. Descreditados momentaneamente de nossa posição de protagonistas, somos tornados sujeitos ao olhar externo; encenado sob o regime sensível sugerido pela imagem, nosso imaginário é tomado de assalto por uma gramática visual alheia. Tal acionamento vivo proposto pela pintura, imaginário vazante que nos integra à certa cena, é atestado pela espessa presença da tinta que se acumula em uma textura orgânica na superfície da tela; a imagem é tornada aderente e viscosa na captura do olhar.
Para Maurice Blanchot as imagens teriam justamente essa capacidade de nos tornar íntimos ao alheio, familiares a uma “vizinhança ameaçadora de um exterior”. Tal externalidade pode nos coreografar de súbito numa cena própria; de relance, estamos sob o seu efeito que transpassa a pintura, deixamos de estar diante da imagem para integrarmos a cena onde certo acontecimento sensível é por ela disposto. É justamente nesse intervalo entre olhar e ser tomado pela pintura que algo se passa: vivemos um acontecimento em imagem. Ainda para Blanchot, “Viver um acontecimento em imagem não é ter desse evento uma imagem, [...] o que acontece nos arrebata, como nos arrebataria a imagem, ou seja, nos despoja, de si e de nós, mantém-nos de fora, faz desse fora uma presença”1. É nesse domínio que o coração responde como domicílio próprio ao desenrolar desse acontecimento sensorial, somos incorporados à cena, que agora transbordou o olho amortecedor entre nós e a imagem. Perdemos assim a seguridade das distâncias, os dois polos são evadidos e desintegrados; conjunção indecidível, uma cena na qual o desaparecimento da imagem é a condição de sua sobrevivência
em acontecimento. É nessa medida que, como afirma a epígrafe do texto, o acontecimento persiste mesmo na ausência da imagem, trata-se do perpetuar de uma cintilância, o resto do filme que fica no corpo depois que acendem as luzes do cinema.
Esse trecho ganha melhores contornos na integralidade do conto ao qual pertence, “Um moço muito branco”2, de Guimarães Rosa. Nele, testemunha-se um cataclisma: em uma noite calma, um homem todo feito luz cai do céu como um meteoro que atravessa o horizonte de uma pequena cidade mineira. O ato luminoso se faz imagem como um relâmpago aos olhos dos habitantes, mas seu luzir drástico produz certo acontecimento. A partir de então todo o cotidiano dos arredores é alterado pelo aparecimento desta estrela viva que passa o dia a alterar o regime da luz por onde passa. Seu cintilar é vasto a ponto de não ter rosto e sua existência é irregistrável em imagem, apesar de sua presença ser sensivelmente testemunhada por todos. Este efeito de alteração sensível provocado pela modulação da luz é atestado fora da imagem, na carne de sua presença involuntariamente incorporada, known by heart. Nas pinturas aqui reunidas, tratase desse gesto que extrapola a imagem através da modulação de uma luz que nos envolve em certa sensação aderente. Por fim, vale lembrar que em sua carta onde anuncia uma “Nova teoria sobre luz e cores” (1672), Isaac Newton deixa um problema em aberto: o desafio de determinar por que modos ou ações a luz “produz na nossa mente as sensações”3. A busca insidiosa presente nessas obras parece chamar essa dúvida para a cena e desenhar conosco outros palpites para o alvorecer de tal dificuldade.
A imagem descrita acima é um registro mental provisório dos encontros com Ricardo Alves. A posição enunciativa escolhida, essa terceira voz participante que nos olha, poderia ser uma das imagens pintadas pelo artista, também a nos encarar e descrever. Propor a imagem como ponto de enunciação, nos situar diante do olhar revidado pela pintura, fazer falar o forro imaginário que sustenta a cena são declinações de um jogo constante em suas obras, algo que se formaliza sem esforço, como num gesto que se sabe de cór. Apesar de sutil, tal jogo perspectivo é grave. Ele não se desenrola por intenção calculada; palpita nas telas com a espontaneidade do ritmo cardíaco, e se desenrola de coração para coração, como um sinal sensível transmitido num revirar de ponto de vista disposto pela tela. A gravidade dessa operação simples subverte a clássica posição retiniana de quem vê ou lê uma cena. Fazendo girar o enquadre, agora a imagem é rainha. Descreditados momentaneamente de nossa posição de protagonistas, somos tornados sujeitos ao olhar externo; encenado sob o regime sensível sugerido pela imagem, nosso imaginário é tomado de assalto por uma gramática visual alheia. Tal acionamento vivo proposto pela pintura, imaginário vazante que nos integra à certa cena, é atestado pela espessa presença da tinta que se acumula em uma textura orgânica na superfície da tela; a imagem é tornada aderente e viscosa na captura do olhar.
Para Maurice Blanchot as imagens teriam justamente essa capacidade de nos tornar íntimos ao alheio, familiares a uma “vizinhança ameaçadora de um exterior”. Tal externalidade pode nos coreografar de súbito numa cena própria; de relance, estamos sob o seu efeito que transpassa a pintura, deixamos de estar diante da imagem para integrarmos a cena onde certo acontecimento sensível é por ela disposto. É justamente nesse intervalo entre olhar e ser tomado pela pintura que algo se passa: vivemos um acontecimento em imagem. Ainda para Blanchot, “Viver um acontecimento em imagem não é ter desse evento uma imagem, [...] o que acontece nos arrebata, como nos arrebataria a imagem, ou seja, nos despoja, de si e de nós, mantém-nos de fora, faz desse fora uma presença”1. É nesse domínio que o coração responde como domicílio próprio ao desenrolar desse acontecimento sensorial, somos incorporados à cena, que agora transbordou o olho amortecedor entre nós e a imagem. Perdemos assim a seguridade das distâncias, os dois polos são evadidos e desintegrados; conjunção indecidível, uma cena na qual o desaparecimento da imagem é a condição de sua sobrevivência
em acontecimento. É nessa medida que, como afirma a epígrafe do texto, o acontecimento persiste mesmo na ausência da imagem, trata-se do perpetuar de uma cintilância, o resto do filme que fica no corpo depois que acendem as luzes do cinema.
Esse trecho ganha melhores contornos na integralidade do conto ao qual pertence, “Um moço muito branco”2, de Guimarães Rosa. Nele, testemunha-se um cataclisma: em uma noite calma, um homem todo feito luz cai do céu como um meteoro que atravessa o horizonte de uma pequena cidade mineira. O ato luminoso se faz imagem como um relâmpago aos olhos dos habitantes, mas seu luzir drástico produz certo acontecimento. A partir de então todo o cotidiano dos arredores é alterado pelo aparecimento desta estrela viva que passa o dia a alterar o regime da luz por onde passa. Seu cintilar é vasto a ponto de não ter rosto e sua existência é irregistrável em imagem, apesar de sua presença ser sensivelmente testemunhada por todos. Este efeito de alteração sensível provocado pela modulação da luz é atestado fora da imagem, na carne de sua presença involuntariamente incorporada, known by heart. Nas pinturas aqui reunidas, tratase desse gesto que extrapola a imagem através da modulação de uma luz que nos envolve em certa sensação aderente. Por fim, vale lembrar que em sua carta onde anuncia uma “Nova teoria sobre luz e cores” (1672), Isaac Newton deixa um problema em aberto: o desafio de determinar por que modos ou ações a luz “produz na nossa mente as sensações”3. A busca insidiosa presente nessas obras parece chamar essa dúvida para a cena e desenhar conosco outros palpites para o alvorecer de tal dificuldade.
[1] BLANCHOT, Maurice. "Les deux versions de l'imaginaire". L'espace littéraire. Paris: Gallimard, 1998, p. 352.
[2] ROSA, João Guimarães. Um moço muito branco. In: ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. 14. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
[3] NEWTON, Isaac. The correspondence of Isaac Newton. Ed. H.W. Turnbull. 7 vols. Cambridge: Cambridge University Press, 1959, p. 82.