por Thais Rivitti
Há exatos 19 anos, em 15 de outubro de 1997, a nave Cassini era lançada ao espaço, com o objetivo de coletar informações sobre Saturno, seus satélites e anéis. A viagem levou quase 7 anos quando, finalmente, ela entrou na órbita do planeta a que se destinava. Cassini é, também, a pintura que abre a exposição de Ricardo Alves, Desse pálido ponto, uma alusão ao livro do astrofísico Carl Sagan que refere-se à Terra – tendo como base uma imagem feita nas proximidades de Saturno – como um pálido ponto azul. A tela, de grandes dimensões, traz uma imagem frontal da espaçonave flutuando e indica que estamos prestes a realizar uma longa viagem.
Distância, aliás, é um dos conceitos que será problematizado nesse novo conjunto de obras. A grande variação de tamanhos das telas expostas – a maior delas mede 2,70 x 1,90 m e as menores 30 x 40 cm – deixa evidente a impossibilidade de colocar as coisas em escala. Embora pertençam a um mesmo conjunto temático – a exploração do espaço – não existe um ponto fixo comum às imagens que servem de referência para as pinturas. Há imagens feitas da Terra. Outras, embora feitas a partir da Terra, só se constituem com a ajuda de aparatos como o telescópio. E, ainda, há aquelas que foram feitas do espaço.
No entanto, a distância que mais nos interessa comentar aqui, talvez, seja aquela que historicamente separa a pintura da fotografia. Duas linguagens artísticas distintas que, no entanto, estabelecem uma forte relação de reciprocidade. Tornou-se lugar comum, na História da Arte, dizer que a pintura veio antes, que ela teria sido a primeira a fazer imagens da “realidade” (e que, depois da fotografia, teve que inventar para si uma nova razão de existir). Os trabalhos de Ricardo Alves, contudo, invertem essa trajetória, fazendo o caminho contrário.
Suas pinturas têm como referente artefatos e paisagens raramente vistos pelo homem: a superfície de Marte, o espaço para além da órbita da Terra, espaçonaves em construção, bases de lançamento de foguetes, ou explosões de grandes dimensões. São essas as imagens pelas quais o artista se interessa e delas surgem uma série de tensões que animam suas pinturas. Ao mesmo tempo em que partem de um registro fotográfico e científico, supostamente preciso, lidam com uma precariedade constitutiva. Sobre essa precariedade bastaria mencionar que as fotos do espaço, em sua grande maioria, são em preto e branco e depois são coloridas artificialmente por uma equipe de especialistas.
Talvez seja essa grande margem de indefinição das imagens das quais o artista parte o motor mais potente de sua pintura. Nela convivem a ambição científica à precisão e a fantasia própria à imaginação. Nas telas maiores, observamos desenhos que se pretendem ilustrações esquemáticas convivendo com zonas de profunda indeterminação. Refiro-me aqui aos trechos em que a cor do fundo vaza à superfície, em que as marcas de pincel ficam visíveis, em que os acúmulos de camadas de tinta criam uma massa opaca na superfície pictórica ou que a tinta escorre, manchando a pintura e nos lembrando de sua condição artesanal. Nas telas menores, parece que estamos diante de esboços. Um desenho rápido, uma pintura feita às pressas, inacabada, como uma anotação que ainda precisaria ser retocada.
Nesse conjunto de obras que Ricardo Alves mostra, as pinturas vêm depois das fotografias. Mais um ato nessa dança entre as duas linguagens que constantemente alternam suas posições. O final da missão da sonda Cassini está previsto para 2017 quando ela deverá mergulhar na atmosfera de Saturno e ser destruída. Por muitos e muitos anos, as imagens produzidas por essa máquina serão a única realidade desse mundo distante. O que não impede que ele continue a ser inventado pela pintura e outras formas artísticas.
Mensagem das estrelas
por Douglas de Freitas
"Eis que no sétimo dia de Janeiro do presente ano de 1610, na primeira hora da noite, enquanto contemplava com o óculo os astros celestes, apareceu Júpiter. Dispondo, então, de um instrumento excelente, percebi (coisa que antes não me havia acontecido em absoluto pela debilidade de outro aparelho) que o acompanhavam três estrelinhas, pequeninas, ainda que claríssimas, as quais por mais que considerasse que eram do número das fixas, me produziram certa admiração, pois pareciam dispostas exactamente em linha recta paralela à eclíptica e também mais brilhantes que as outras de magnitude parecida."[1]
Publicado em 1610, Sidereus Nuncius, ou “A Mensagem das estrelas”[2], é um curto tratado escrito em Latim onde Galileu Galilei relata suas recentes descobertas sobre o universo, como observações sobre a Via Láctea, o corpo lunar e as luas de Júpiter. Galileu avançou milhares de passos ao realizar adaptações em um aparelho ótico que aumentaram trinta vezes a capacidade de ampliação de um objeto, inaugurando um novo momento no estudo dos corpos celestes.
De 1610 aos dias atuais muito mudou. A criação do Telescópio Hubble, lançado ao espaço em 1990, passou então a fornecer imagens do mapeamento das estrelas. O Hubble deu à civilização humana uma nova visão do universo e proporcionou um salto equivalente ao dado pela luneta de Galileu no século XVII.
Não se tratam mais de fotografias, ou imagens simplesmente captadas do espaço, o Hubble utiliza também de outros dispositivos para mapear territórios mais distantes, como raios gama, infravermelho e raios-X. Para se tornarem mais próximas à realidade visual dessas estrelas, essas imagens passam por uma série de softwares, que sistematizam as informações, produzindo imagens especulativas baseadas nos dados captados, transformando-os no que conhecemos desses espaços mais distantes de nós.
É dessas imagens de mapeamento espacial, satélites e outros equipamentos criados pelos humanos para alcançar o inalcançável, o espaço e o domínio do universo, que Ricardo Alves se apropria para a realizar suas pinturas. Extraídas da internet, essas paisagens construídas por aparelhos, muitas vezes mais ficcionais do que reais, são reconfiguradas pelo artista, trabalhadas em suas composições, para então originar suas pinturas.
Assim como paisagens terrestres de bases de lançamentos espaciais, são realizadas como se fossem territórios extraterrestres, ausentes de vida humana, telescópicos e outros artefatos de observação espacial são realizados pelo artista com toda estranheza que essas máquinas aparentam. É retratar o universo com o estranhamento que essas máquinas e imagens tem. É questioná-las, apesar de já estarmos com nosso olhar domado pela banalidade que essas imagens conquistaram.
Se essas imagens espaciais se constroem por especulação científica, a pintura lança mão de outras soluções, simplificações formais e esquemas que residem entre ser gráficos e registros desses equipamentos, como em Desenho de ondas supersônicas, onde a pintura é suporte para que se faça ver o desenho do movimento de um ônibus espacial. Ou ainda em Estrela anã em false color ou False color, onde uma simplificação formal dessas imagens realizadas por satélites, e coloridas artificialmente, se estruturam em novas cores e planos, convertidas em abstrações que remetem a essas imagens estreladas.
A pintura de Ricardo Alves é olhar essa imagem falsamente construída e atribuir novos valores de cor, profundidade e sentido para elas, nova construção. Uma construção mais humana, que assume suas falhas, suposições e incompletudes, como em Ultra Deep Field falhado. É propor uma nova metodologia de observação, menos científica. É uma devolução à imagem do mistério que os satélites removem do universo ao fotografá-lo. É retomar o encanto de embate com o desconhecido de modo menos direto, talvez mais próximo dos estudos e observações de Galileu, que carregam em si relatos poéticos do encontro com essas estrelas.
[1] Galileu Galilei em Sidereus Nuncius, publicado em Veneza, em 1610.
[2] A Mensagem das estrelas, versão em português do tratado de Galileu, foi editada pela Duetto Editorial em 2009 para a Scientific American Brasil.
por Rodrigo Andrade
*Escrito para o catálogo Um Desassossego - 20 pintores, exposição coletiva na Galeria Estação em São Paulo/SP em novembro de 2016
A pintura de Ricardo Alves se insere na recente tradição de pinturas baseadas em imagens fotográficas, mas no processo de feitura se distanciam dessa base inicial Nesse processo, as dúvidas e reorientações vão tecendo uma superfície pictórica em sutis relações tonais e cromáticas, e construindo espaços amplos que tendem ao vazio, geralmente pontuados com estruturas geométricas como postes, fios e plataformas. O desejo de figuração, que por vezes adquire um caráter quase ilustrativo, e o desejo da pintura pura estão sempre num suave conflito, fértil em possibilidades plasticas que são exploradas com curiosidade e variação. Sua poética da solidão (sondas espaciais, descampados, pântanos) nunca torna-se sentimental, pois suas pinturas são guiadas por uma intenção estritamente estética.
por Rodolfo Rocha
*Escrito por ocasião da participação do artista na exposição coletiva Fine Art Universiade U-35, no Museu de Arte de Tsukuba, Japão, entre novembro e dezembro de 2017.
Em seus trabalhos mais recentes, o artista plástico brasileiro Ricardo Alves volta sua atenção à pintura de explosões, das quais acabou se aproximando através da busca de imagens curiosas e misteriosas do espaço sideral – um tema com o qual vem trabalhando nos últimos anos. Tomando a fotografia como ponto de partida, o artista constrói na tela sua própria visão, manipulando cor, luz e formas, buscando assim afastar-se de uma espacialidade fotográfica e da forma naturalista, assim entrando no território do imprevisto.
O próprio processo artístico de Ricardo Alves tem uma relação direta com o tema das explosões, deixando margem para o acontecimento de falhas, imprevistos e frustrações. Neste ponto, a tensão entre imagem fotográfica e construção pictórica torna-se bastante evidente devido às marcas de pincel, manchas e inúmeras camadas de tinta, nos lembrando de que esta é uma representação artística e estetizada da nossa realidade visível.
Além disso, a ‘frustração’ parece ser um dos temas centrais dessas obras. Se por um lado cada um de nós precisa lidar com suas próprias falhas e frustrações de modo solitário – necessidade essa realçada pelo protagonismo de certos elementos na tela, que muitas vezes tomam todo seu espaço –, por outro temos a necessidade pessoal de explosão, como um momento de catarse e libertação. Talvez isso seja o que mais nos atrai nestas imagens. A possibilidade de explosão de nós mesmos para além de nosso próprio corpo. No dia seguinte talvez acordemos um pouco cansados, mas certamente renovados.